Em Tempo – Romance Moderno II – à la Nelson Rodrigues

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Por: Prof. Gilberto Tannus*

O longo apito do trem cortou como lâmina afiada de navalha o tecido negro da noite. Madrugada. Chuva. Vento forte.

Fabíola contemplou as pequenas ilhas de opaca luminosidade que se aproximavam lentamente. Postes velhos de madeira, com lâmpadas amarelas, enfileirados ao longo dos trilhos da estação ferroviária da cidadezinha interiorana.

Loira, linda, olhos azuis, pele alabastrina. Deusa grega em forma de mulher. Lágrimas furtivas deslizavam por suas faces, rapidamente absorvidas por um lenço cor-de-rosa.

Cansada das traições do esposo, tomara a drástica decisão de abandoná-lo em sua rica mansão localizada em um dos bairros mais valorizados da cidade de São Paulo e retornar à casa de seus pais.

Há muito deixara de visita-los. Dez anos? Quinze? Perdera a noção do tempo.

A vida correra tão rápida depois que partira para a cidade grande, adolescente ainda.

Junto com o mágico do Circo Internacional.

Passara a ser sua amante e assistente de palco, participando dos principais números.

Centenas de vezes fora cortada ao meio pelo Mago Farid.

Adorava aparecer diante do público com um biquíni vermelho, deslumbrante, sorrindo, amparada pela mão gentil do Houdini libanês.

Sentia no ar o cheiro do desejo animalesco da plateia adulta – velhos, senhores, jovens e adolescentes –, que não ousavam sequer piscar para não se desfazer um só instante da visão encantadora de sua figura sensual.

Viajou em um trailer circense por todo o país. Entediada com Farid, passou a viver com Jasão, o atirador de facas. Abandonou-o quando, amarrada à roleta de madeira, quase perdeu a orelha direita. Jasão costumava embebedar-se antes de suas apresentações.

Abrigou-se nos braços de Salomão, o corajoso domador de leões. Por pouco tempo. Sadomasoquista, além de atemorizar as feras com seu chicote, utilizava também – de maneira selvagem – seu instrumento de trabalho nas níveas nádegas de Fabíola. Contestadora ferrenha dos ensinamentos extremos da doutrina hedonista do Marquês de Sade, demitiu-se do Circo Internacional quando o mesmo erguera seu toldo azul estrelado na maior capital do Brasil.

Lá conhecera Geraldo, enquanto dançava seminua em uma boate noturna, na Avenida São João. Enfeitiçado por sua beleza, a pedira em casamento. No altar, o canalha jurara fidelidade, todavia, a traíra com dezenas e dezenas de outras mulheres.

Arrumara as malas e partira, retornando às suas origens. Ao encontro de seus pais, no humilde sitiozinho da Lagoa Santa.

O trem apitou, diminuiu a velocidade e, finalmente, parou. Fabíola desceu na plataforma vazia. Solitária e triste… a estação… e sua alma…

(Cai o pano).

*Prof. Gilberto Tannus é mestre em história pela Unesp

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