Artigo: Preconceito racial – entre cores e valores

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Por: Isabela Nascimento*

No dia 22 de abril, na cidade de Taquaritinga, interior de São Paulo, um caso de injúria racial foi registrado nas redes sociais pelas próprias infratoras e rapidamente chegou a todos os celulares locais, regionais e até mesmo nacionais. O caso foi divulgado em diversos veículos de comunicação: duas adolescentes cometeram o crime de racismo ao ofender o entregador de uma lanchonete sob a alegação de que havia um erro no troco dado por ele. Estive acompanhando os desdobramentos desde as primeiras matérias e o que muito me surpreendeu, para além do fato em si, foi ter visto a entrevista dada pela vítima. A surpresa veio da constatação de que Breno, o entregador de 29 anos que foi ofendido, pode ser lido socialmente como um homem branco.

Ao mesmo tempo, uma das adolescentes – aquela que escancara os xingamentos racistas no vídeo (preto, macaco, fedido) – aparentemente tem cabelos alisados por procedimentos e seus traços aludem a características pardas ou de descendência negra. Embora o contexto se desenhe de modo paradoxal, explicações para isso são possíveis quando falamos de Brasil e suas nuances. Puxo na memória um dos primeiros casos de ataques a entregadores que ganhou repercussão nacional, o fato foi registrado na cidade de Valinhos, em 2020: o agressor dirigiu-se ao profissional – um jovem de cabelos lisos e pele morena – proferindo os dizeres: “analfabeto”, “favelado” e, por fim, que o entregador possuía “inveja disso aqui”, apontando para a própria pele alva. O que leva tais sujeitos a serem recebidos com violência racial?

Um país de bases colonialistas e que ainda vive sob o mito da democracia racial, produziu em suas entrelinhas, a manutenção de um olhar escravocrata. Basta olhar para as grandes periferias e seus moradores, basta olhar para os rostos de quem vive nas ruas, basta olhar para a cor da pele das empregadas domésticas, dos garçons, ou das pessoas em situação de extrema pobreza, ou ainda da população carcerária, parafraseando uma conhecida frase: “Nem todo negro, mas sempre um negro” Assim, a sociedade construída sob a marginalização e banalização da população negra, vincula a negritude, sem receio algum, com todo e qualquer tipo de ofensa ou rebaixamento moral que se possa imaginar, vide tantas “piadinhas” racistas que crescemos ouvindo, ou ainda tantas palavras naturalmente usadas no cotidiano: “denegrir”, “inveja branca”, “serviço de preto”, “mercado negro”, entre outras.

 Mais dolorido que pensar no preconceito em si, é ver que as associações com intenção ofensiva crescem no país, aumentando igualmente o abismo eugenista em que vivemos. Se é pobre, se trabalha como entregador, se errou, se quero ofender, se vejo como inferior: ataco racialmente. A negritude como estigma também pode ser analisada a partir da negação de quem a carrega, isto é, se uma pessoa negra convive com maioria branca, é lida como branca, possui poder aquisitivo, e frequenta espaços elitizados: esse será seu modus operandi: negar a negritude e, inclusive, tripudiar em cima das marcas que tal identificação abarca. Esse parece ser o caso da adolescente envolvida no vídeo.

Nesse aspecto, insere-se o debate sobre o colorismo no Brasil, termo cuja origem data de 1982, usado pela escritora Alice Walker em um de seus livros. A expressão é utilizada para diferenciar os vários tons da pele negra, e é a variação entre as tonalidades ou traços negros que influencia na inclusão ou exclusão social. A questão do colorismo vem à tona justamente quando há uma negação da etnia, exemplo disso provém do uso de certas palavras, como: “morena”, “marrom bombom” ou “café com leite”, todas elas com o intuito de aproximar-se mais da branquitude e menos da herança negra.

No livro Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social (1983), a autora Neusa Santos esclarece que “A partir do momento em que o negro toma consciência do racismo, seu psiquismo é marcado com o selo da perseguição pelo corpo-próprio. Daí por diante, o sujeito vai controlar, observar, vigiar este corpo que se opõe à construção da identidade branca que ele foi coagido a desejar.” Desse modo, o processo é sofrido e doloroso também para aquele que persegue a si mesmo, tentando incessantemente pertencer a uma identidade que o traz segurança e aceitação. Essas nuances mostram os incontáveis danos causados pela essência racista e elitista presente no país. Justo no Brasil: todo feito de indivíduos plurais.

Finalizo ressaltando que, independente da identificação étnica do entregador, nada altera a gravidade e o crime que fora cometido pelas duas adolescentes. Desejo a elas a devida punição e futuro trabalho de humanização, pois suas formas – tão equivocadas – de ler a vida e agir no mundo causaram tamanha consequência. A tarefa de reconstrução não é somente das escolas e dos currículos escolares, mas também do entorno familiar, virtual e social em que convivem: o trabalho é coletivo. Assim, aproveito para resgatar o provérbio africano que diz: “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança.”

*Isabela Nascimento é Professora de Redação e Espanhol, Bacharela em Letras e Mestra em Estudos Literários.

**Os artigos publicados com assinatura não manifestam a opinião de O Defensor. A publicação corresponde ao propósito de estimular o debate dos problemas municipais, estaduais, nacionais e mundiais e de refletir as distintas tendências do pensamento contemporâneo.

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