Artigo: Trabalho intermitente: mercado do trabalho, proteção social e a discussão no STF

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Por: Sylvia Lorena*

A modernização das leis do trabalho (Lei 13.467/17) teve, entre seus objetivos, trazer para a atualidade partes da legislação que já não condiziam com formas contemporâneas de trabalho e produção e preencher lacunas na regulamentação das relações trabalhistas atuais. Entre as inovações trazidas em 2017, a definição de regras para o trabalho intermitente permitiu a formalização de vínculos caracterizados pela prestação de labor subordinado, mas de maneira não contínua.

Tal forma de trabalhar, há algum tempo, já tem participação no mercado de trabalho. Mas existia um vácuo legal que impedia, na prática, a formalização desses trabalhadores, garantindo-lhes proteções das leis trabalhistas e de seguridade social, tirando-os da precariedade do “bico”. A intenção da lei, assim, foi a de reconhecer que parte das atividades exercidas no mercado de trabalho são, por natureza, episódicas e esporádicas – como ocorre, por exemplo, em feiras, eventos e exposições. Acertou o legislador ao deliberar pelo caminho de adequar a lei à realidade – ao contrário de, forçosamente, enquadrar a realidade na lei.

E, completados quatro anos de vigência do reconhecimento legal do trabalho intermitente, vale destacar que não se concretizaram as projeções alarmistas de que as empresas passariam a adotar esses contratos de trabalho em detrimento dos empregados em regime integral. Pelo contrário. Nesse período, tem-se observado um incremento de contratos intermitentes em todos os setores, mas os números em nada sinalizam ameaça aos vínculos de emprego tradicionais.

Dados do Cadastro Geral de Emprego (Caged), por exemplo, mostram que os contratos intermitentes totalizaram 62 mil novos vínculos de janeiro a setembro neste ano (15% deles na indústria). Isso corresponde a 2,5% dos 2,5 milhões de postos formais de trabalho criados no período. Aliás, esse tipo de contratação durante a pandemia da Covid-19 foi um importante instrumento para manter vínculos formais de emprego num contexto de imprevisibilidade, com paralisações e retornos repentinos de produção, e muitas incertezas na economia de forma geral.

Levantamento feito pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) com 523 empresas do setor reforça essa percepção. Dessas indústrias, 15% utilizaram esses contratos entre 2019 e 2020. Muito impactadas pelas consequências da crise sanitária nas atividades econômicas, um dos motivos apontados para essa utilização foi que o contrato intermitente possibilitou uma rápida adequação da força de trabalho à flutuação repentina de demanda, permitindo às empresas dimensionar sua força de trabalho de forma mais adequada em face das incertezas do mercado.

Outros dois dados importantes dessa consulta realizada pela CNI ajudam a situar a relevância do contrato intermitente para situações específicas da realidade produtiva. O primeiro mostra que 72% dessas empresas formalizaram nos contratos um mínimo de horas mensais. Os quantitativos mais comuns, ainda que a legislação não estabeleça mínimo mensal de horas a serem prestadas, foram de até oito horas mensais (20% dos contratos) e de pelo menos 40 horas por mês (23% dos contratos). O segundo dado dá conta que, entre as empresas que firmaram contratos intermitentes, 60% contrataram entre 1 e 10 trabalhadores na modalidade.

Com isso, pode-se reconhecer que as indústrias têm buscado a utilização de contratos intermitentes para lidar com sazonalidades, conseguir alguma flexibilidade para atendimento de demandas específicas e reduzir burocracias onerosas com processos de contratação e demissão.

No mais, o trabalho intermitente permitiu, conforme revelado pela consulta, a manutenção de vínculos entre as indústrias e trabalhadores qualificados, mas cujas rotinas de produção da empresa não justificavam contratar um empregado em jornada de tempo integral para determinada função. É o caso, por exemplo, de profissionais que realizam manutenções rotineiras, mas intermitentes, de máquinas ou equipamentos.

Juntos, esses dados apontam que não há indicativo de substituição de trabalhadores em tempo integral por intermitentes – ao contrário do que apontam teses contrárias à regulamentação. Nesses quatro anos desde que foi incluído na CLT, não existem elementos para sustentar as alegações de que o intermitente precariza as relações do trabalho e permite a substituição desenfreada de profissionais em tempo integral por essa modalidade.

Aliás, vale lembrar, esse argumento foi também utilizado pelos detratores da terceirização, que afirmavam que ela geraria ampla precarização do emprego, e transformaria todos em terceirizados. Isto decerto não ocorreu.

Na verdade, o intermitente, assim como a terceirização, foi um fenômeno reconhecido pela legislação trabalhista em um contexto de balanço entre proteções trabalhistas e de seguridade social, com a necessidade de reconhecer as mais diversas formas de produzir e de trabalhar. Nesse sentido, pode-se lembrar a afirmação do ministro Luís Roberto Barroso, do STF, em seu voto na ADPF 324 e no ARE 713.211, sobre terceirização: “O risco do desemprego é a assombração das próximas gerações. A sociedade, as empresas, o direito do trabalho e o sindicalismo precisam adaptar-se ao novo tempo. A história não para. (…) nós temos que ser passageiros do futuro e não prisioneiros do passado”.

Nesse contexto, espera-se que o STF reconheça a constitucionalidade desse contrato no julgamento das ADIs 5826, 5829 e 6154, assim como reconheceu a constitucionalidade da terceirização.

Isso porque o contrato intermitente é um impulso para formalização do trabalho, alinhado ao objetivo constitucional de salvaguardar proteções sociais ao maior número de trabalhadores que, sem ele, permaneceriam à margem das salvaguardas legais.

Com o contrato intermitente respeitam-se todas as proteções trabalhistas constitucionais. Sempre que o trabalhador é chamado para prestar o trabalho, com vínculo de emprego, ele recebe salário correspondente ao tempo trabalhado, assegurando-se remuneração horária equivalente ao dos demais empregados do estabelecimento. Além disso, são garantidas todas as remunerações proporcionais dos demais direitos trabalhistas, e são assegurados os recolhimentos para a Previdência, o período de férias, as proteções de segurança e saúde no trabalho, os benefícios de negociação coletiva, entre outros.

Com isso, atende-se ao princípio da isonomia por se assegurar, na proporcionalidade do tempo trabalhado, os mesmos direitos. Como bem ressaltou o advogado-geral da União em sua sustentação oral, “o princípio constitucional da isonomia está atendido, inclusive quanto à proporcionalidade de tratamento entre iguais e desiguais na medida em que se desigualam. E não há aqui, portanto, nenhum retrocesso social”.

Em conclusão, vale reafirmar que o contrato de trabalho intermitente está alinhado ao espírito da Constituição, tendo como premissa conferir proteções trabalhistas e de Previdência Social ao maior número de trabalhadores. Sob a guarda dos fundamentos constitucionais da valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, foi uma novidade legislativa que buscou promover o pleno emprego, em especial o emprego formal, sem descuidar das garantias inerentes a ele. Portanto, deve ser reconhecida sua constitucionalidade.

*Sylvia Lorena é Gerente-executiva de Relações do Trabalho da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e Pablo Rolim Carneiro é especialista em Relações do Trabalho da CNI.

**O artigo foi publicado no dia 17 de novembro no portal Jota.

***Os artigos publicados com assinatura não manifestam a opinião de O Defensor. A publicação corresponde ao propósito de estimular o debate dos problemas nacionais e mundiais e de refletir as distintas tenências do pensamento contemporâneo.

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