Artigo: Retrotopia, literatura e a violência contra a mulher

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Por: Prof. Sérgio A. Sant’Anna*

Ela terminou de arrumar a casa e rapidamente ousou:

– Estou cansada. Esses afazeres diários cansam, tornam-nos escravos. Ainda usou o masculino como forma de se expressar, dando sinais de uma certa subordinação. Reparem que diante do discurso dela há uma formalidade, variação linguística prestigiada de nossa Língua Portuguesa, em que prospera uma linguagem mais elaborada. Ela formou-se na UNICAMP, fez Linguística como Graduação, mas não seguiu carreira. Optou pelos filhos, esposo, casa e família. Interessante que esse discurso é proposto com a intenção de levar-nos à reflexão, ao pensar, mesmo que este soe como piegas, tratado amplamente, porém se faz necessário para que possamos exercer a nossa criticidade sobre o assunto seja qual o viés que você, leitor, encarregar-se-á em tomar. Todavia, confesso, não há espaço para a animalização naturalista do ser. Agressões não são argumentos.

Ele, o marido, alicerçado pelo pronome pessoal do caso reto, primeira pessoa, singular masculino, não aceitara, aquelas palavras proferidas pela esposa no início destes escritos, e soaram como uma afronta:

– Então sou eu o culpado! Trabalho o dia todo, dou a ti o bom, o melhor e você não sabe retribuir. Isso é reflexo dessas leituras que você vem fazendo. Só pelo fato de ter um diploma universitário não a coloca acima dos demais. Mulher nasceu para viver ao lado do homem. É isso o sinônimo de família, de prosperidade no lar…

– Mas… Ele não a deixou falar.

– Outro dia a vi assistindo o vídeo de uma professora chamada Márcia. Fui ver o histórico da Fulana, é mais uma dessas feministas. Igual a Manuela, aquela que fiz com que você esquecesse. Eu sei que também se interessou por uma tal deputada federal chamada Joice, que gosta de bater boca com homens lá na Câmara dos deputados, mas não adianta, se quiseres ficar comigo será assim: sou eu quem dito as regras…terás que deixar de seguir esse pessoal pelas redes sociais.

Sob a supervisão do marido ela foi deixando de ser seguidora daquelas as quais ela se identificava…

E é assim que o machismo prolifera-se. É secular. Ampara-se em conceitos religiosos mal interpretados. Dirigidos ao agrado de um determinado público. Obras literárias como “Madame Bovary”, de Gustav Floubert; “O primo Basílio”, de Eça de Queirós são exemplos dessa sociedade patriarcal. E mesmo escritoras como Raquel de Queiróz e Carolina Maria de Jesus sofreram o preconceito na carne em seu cotidiano por serem mulheres. Mas quantas mulheres não são mortas, espancadas, vítimas da atrocidade masculina?

No ano de 2019, num trabalho em que eu desenvolvia junto aos meus alunos do Ensino Médio da escola São Marcos de Porto Alegre no Rio Grande Sul, um dos nossos temas foi o feminicídio. Com uma palestra proferida por uma delegada, uma especialista na área, foi relatado aos nossos alunos e professores que os índices no Brasil só aumentavam, e a tendência mesmo com a rigorosidade de algumas emendas dissolvidas na Lei, os homens continuam a bater, continuam a torturar psicologicamente, a assediar, a estuprar, pois a possessão é difundida como normal.  Quem já não escutou e seguiu ao ditado popular: “Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”, pois bem. Isso ocorre com frequência. Infelizmente. Esses discursos vazios, difundidos como “fraquejadas”, “escapadinhas”, “quem nunca fez”, “faz parte do instinto masculino”, naturaliza-se através de uma visão determinista e chula. Pensamentos hostis e belicosos, que nos últimos três anos se acentuaram. Represados no passado, essa voz, hoje, amplia-se e seus adeptos saem das tumbas. Horda, turba que almejam controlar o país.

Não há margem mais para esse tipo de atitude, bater, espancar, matar mulheres em nome da honra como Doca Street, Euclides da Cunha, etc. Há que se combater com rigor essa atrocidade. A retrotopia não pode imperar.

*Prof. Sérgio A. Sant’Anna – Professor de Redação nas Redes Adventista e COC em SC e jornalista.

**Os artigos publicados com assinatura não manifestam a opinião de O Defensor. A publicação corresponde ao propósito de estimular o debate dos problemas nacionais e mundiais e de refletir as distintas tenências do pensamento contemporâneo.

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