Erga Omnes – Dom Quixote e o Direito

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Por: Gustavo Schneider Nunes*

Em Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes, um fidalgo desprovido de riqueza decide vender quase tudo o que tem para comprar livros sobre cavalaria e enlouquece tentando decifrar tais escritos. Ele próprio se faz cavaleiro andante, deixa o seu verdadeiro nome Alonso Quijano para trás, e se autoproclama Dom Quixote. Sob essa condição, sai pelo mundo em busca de justiça aos desvalidos.  

Em suas viagens imagina viver na era da cavalaria, em defesa de donzelas em apuros, encarando monstros e moinhos de vento como se fossem gigantes, dentre outras situações aparentemente ridículas, mas que eram por ele enfrentadas com nobreza.

Com o insucesso em suas andanças, retorna para o seu lugar de origem com frustrações. Os seus familiares colocam fogo em seus livros, mas ele não desiste de sua empreitada e, doravante, auxiliado por Sancho Pança, sai pelo mundo a fim de realizar seus sonhos.

Originalmente, a obra é composta de dois livros e no final do primeiro, Dom Quixote retorna engaiolado, como louco. No segundo livro, entretanto, realiza nova saída desbravando liberdade e à procura de sua grande dama Dulcinéia de Toboso, personagem fictícia e inspirada em Aldonza Lorenzo.

Nessa tentativa de encontrar Dulcinéia, Dom Quixote depara-se com os duques e toda aquela fantasia em sua mente passa agora a ser encarada como realidade, por lhe proporcionarem um castelo e tratamento à altura ao posto então anunciado, tendo Sancho assumido o cargo de governador da ilha de Barataria.

Ocorre que essa confusão entre fantasia e realidade toma Dom Quixote de tal maneira que ele passa a ser novamente tratado como louco.  Ao ser derrotado pelo bacharel Sansão Carrasco em um duelo, vê-se obrigado a retornar para o seu povo de origem e, por não ter mais ilusão, sonho ou utopia, acaba por recuperar a razão, renuncia aos romances de cavalaria e, tão longo, morre.

O trecho do livro que mais guarda relação com o Direito é o que cuida dos galeotes, pessoas condenadas às galés, em substituição às penas de mutilação. Ao encontrar vários condenados em uma cadeia, Dom Quixote, acompanhado de seu fiel companheiro Sancho Pança, a cada um deles pergunta o motivo dos crimes que cometeram.

O primeiro galeote disse que tinha sido condenado por estar apaixonado. Como Dom Quixote era apaixonado por Dulcinéia, isso o impactou e, assim, disse-lhe que, se assim com ele fosse, teria que ficar remando por toda a sua vida.

Após ouvir as explicações dos condenados, Dom Quixote discursa para desacorrentá-los e para deixá-los ir em paz, no que obtém sucesso, “porque dura coisa me parece o fazerem-se escravos indivíduos que Deus e a natureza fizeram livres”.

Acontece aí uma grande ironia com Dom Quixote, pois ao libertá-los, pediu-lhes para irem a Toboso e reverenciar Dulcinéia. Porém, com a recusa dos galeotes, Dom Quixote insiste no pedido, mas termina ele e Sancho sendo apedrejados e tendo as suas roupas subtraídas, ficando nus no caminho de volta para casa.

Numa análise contemporânea, esse relato retrata uma aproximação crítica à expansão do Direito Penal para os diversos assuntos da vida cotidiana, elegendo os inimigos a serem enclausurados.

Pode-se daí fazer a leitura de que por mais que moinhos de vento sejam enfrentados, no final os golpes poderosos sempre hão de derrubar e a dura realidade sempre há de se sobrepor aos sonhos, mas, ainda assim, mesmo diante de tantas adversidades, Dom Quixote nunca deixa de lutar por um mundo mais justo.

* Gustavo Schneider Nunes é advogado, professor e doutorando em direito pela UNAERP.

**Os artigos publicados com assinatura não manifestam a opinião de O Defensor. A publicação corresponde ao propósito de estimular o debate dos problemas nacionais e mundiais e de refletir as distintas tenências do pensamento contemporâneo.

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