Artigo: A metamorfose – há esperança, mas não para nós

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Por: Prof. Sergio A. Sant’Anna*

A pandemia acabou… “ao despertar dos sonhos agitados, Gregor Samsa deu consigo na cama transformado num inseto monstruoso…”. Pois é, quanto não aprendemos com essa pandemia, que ainda não se encerrou. Assim como a metamorfose verossímil de Gregor Samsa, descrita pelo mestre tcheco que nos ensina tanto e parece insistirmos em cometer os mesmos erros, isso 96 anos depois do escritor Franz Kafka ter nos demonstrado através desta novela que muito nos abala e traz à tona a reflexão.

Antes mesmo do escritor judeu compor esta rápida narrativa, escrita de forma objetiva, porém dotada de inúmeros elementos a serem refletidos, o russo Fiódor Dostoievski, em 1864, inaugura a narrativa existencialista com “Memórias do subsolo”. Esse tipo textual enriquece-se com “Os irmãos Karamázov”, focando no relacionamento entre pai e filho. Mais tarde “Assim falou Zaratustra”, de Nietzsche. Em 1938, Sartre publica, “A náusea”, considerado um dos maiores existencialistas; juntando-se a este: “O estrangeiro”, de Camus e a peça “Esperando Godot”, de Samuel Beckett ao descrever a vida absurda de dois vagabundos. Obras importantíssimas para a composição kafkaniana e para as agitações mnemônicas que podemos realizar.

Franz toca em nossa hipocrisia, retira nossas máscaras que usamos para nos proteger do que nos é diferente. Para quem não leu o livro, peço que continue o texto mesmo assim. Kafka tem muito a nos dizer, principalmente diante deste momento que estamos vivendo. O autor tcheco apresenta-nos a indiferença, o descaso com o outro, a ausência de humanidade. Porém, essa aversão ao outro, ao diferente não é de hoje, esse preconceito é secular. Associa-se a este estado de superioridade, cujo ser humano acredita possuir diante dos demais. Um desprezo criticado apenas num momento de exacerbação, entretanto ocorre cotidianamente e optamos por banalizá-lo.

Gregor Samsa, o personagem central da novela, afetado pela mutação, está insatisfeito com o trabalho, mantém-no visando apenas o sustento da sua família. E quantos não se encontram assim, decepcionados pelas condições de trabalho oferecidas, salários defasados, além do desprezo daqueles com quem você convive diuturnamente no espaço profissional. São pressionados por um sistema, que muitas vezes nos limita, e santifica apenas o ato de laborar. Inúmeros cidadãos trabalham pela necessidade, pelo popular “pão de cada dia”. Quantos se arriscaram e se arriscam durante a pandemia? Como insistiu Samuel Smiles: “Os livros nos dão conselhos que os amigos não se atreveram a nos dar”. Noto dezenas de companheiros de trabalho afastados por problemas psicológicos.

Mas não é apenas sobre esses traços que podemos perambular diante desta obra kafkaniana. A mudança sofrida pela personagem central não é sentida externamente, internamente o abalo cabe apenas ao inseto, ou seja, a Gregor, que se comporta como tal. Depois desta transformação ninguém mais lembra daquele quem fora. É como que se nada tivesse realizado. A ingratidão dentro do próprio lar, a aversão às metamorfoses da vida, que muitos ousam condená-las através do preconceito vazio e insano. Gregor Samsa só tinha valor quando trabalhava e pagava às dívidas da família. Condenado por não se enquadrar nesta sociedade mesquinha, violenta, injusta, preconceituosa…salientando que este é um romance existencialista lançado em 1915, retirando das sombras a família Samsa, espelho de muitas outras famílias estagnadas por aqui. Involuídas pelo pensamento do patriarca, dono da moral e dos bons costumes encarapuçado pela máscara da hipocrisia. São as nossas famílias de bem.

Assim como Gregor, Kafka é impedido de externar toda essa sua existência humana, acorrentado pelos valores determinados por uma casta, e condenado à morte pela sua metamorfose, restrito ao seu quarto, um ser humano preso ao falso julgamento de uma sociedade que ainda emite sentenças e lança-nos ao linchamento; hoje, virtual. A pandemia não acabou!

*Prof. Sergio A. Sant’Anna – Professor de Redação nas Redes Adventista e COC em SC e jornalista.

**Os artigos assinados não representam a opinião de O Defensor!

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