As traiçoeiras águas de Narciso

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Prof. Sergio A. Sant’Anna*

Há algumas semanas escrevia, neste mesmo semanário, sobre a aglomeração de pessoas em bares do Rio de Janeiro e alertara que a Cidade Maravilhosa era uma das milhares de cidades brasileiras em que as medidas de distanciamento social, uso de máscaras e álcool em gel não estavam sendo cumpridas. Até aí todos sabíamos. Lamentável, exclamara os leitores. Aborrecidos, perplexos, revoltados, continuou-se o debate.

O comércio retornando de maneira gradual, em algumas cidades; em outras, diversos estabelecimentos com as portas escancaradas. Shoppings e bares recebendo seus clientes e tentando cumprir às exigências sanitárias. Porém, e o cliente? Como o cidadão brasileiro vem reagindo as mais de 125.000 mortes? Parece que o brasileiro banalizou-a. Há tempos essa impotente cadaverização toma conta dos cérebros e o fúnebre não mais espanta e intimida o ser humano. Aquela imagem com trajes preto e numa das mãos a foice, não mais amedronta o brasileiro. Com o advento da tecnologia, as bestialidades ficcionais saíram de cena, dando lugar a um Narciso cada vez mais poderoso. Um ser humano moldado ao egocentrismo típico dos byronianos. Alicerçados por sua capacidade tecnológica e a força dessa contemporaneidade, o Homem acredita que a morte não deve ser temida, e mais do que isso, deve ser ignorada, abolida do vocabulário.

Parece que não se morre mais. Aquela tristeza que acometia os escritores românticos da segunda metade do século XIX é pura utopia. O convívio com doenças como tuberculose e a AIDS (um século mais tarde) não foram suficientes para demonstrar ao ser humano que ele é pequeno, medíocre. Que esse antropocentrismo exacerbado é bradado em meio às multidões, pois ao encarar a solidão que o persegue guiado pelo leito de morte, os gritos de socorro ecoam. Pobre homem febril. Encorajado por alguns, e abandonado quando mais necessita.

Um homem que levado ao messianismo, como o sertanejo intitulado um “Hércules-Quasímodo”, ludibriado por salvadores da Pátria como Antônio Conselheiro, é capaz de negar a própria existência. Basta que seu mentor ou mito assovie ou emita um som para assim todos seguirem feitos “walking deads” ao urro. Sem análise, sem qualquer crítica ou reflexão. “Faço tudo que o meu mestre mandar”.

As cenas em que mostram as praias brasileiras lotadas, pelos diversos Estados brasileiros semana passada, durante o feriadão prolongado de Sete de Setembro, escancaram o menosprezo aos demais seres humanos. A ingratidão com os milhares de brasileiros mortos pela Covid-19, além da ausência de altruísmo. Eles só querem gozar. Aproveitar a vida. Seguir amparados numa retórica retardada pela falta de argumentos e solidificada pelo messianismo, literalmente.

Em “A menina que roubava livros” a Morte diz: “…o que me assombra são os seres humanos…”. A morte intimidada pelo Homem, que ignorando ao outro apaixonou-se pela banalização da mesma. As águas de Narciso são traiçoeiras.

*Prof. Sergio A. Sant’Anna – Professor da Rede Adventista em Santa Catarina; Corretor de Textos em “Redação sem Medo”.

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