Artigo: Circuito fechado e o substantivo altruísmo
Prof. Sérgio A. Sant’Anna
Lembrei-me agora de uma crônica denominada “Circuito Fechado”, escrita pelo contista Ricardo Ramos, filho do grande Graciliano. Li esta crônica em uma aula de Língua Portuguesa com a dona Elza Calderazzo, depois me lembro de ter analisado a crônica mais duas vezes, ainda no Ensino Médio, com as professoras Sandra Orrico e com a dona Alzira Jocob. Fascinante, apesar de os adjetivos, responsáveis pela caracterização não aparecerem, os substantivos conduzem o texto com maestria. Os méritos ao escritor.
Por que me lembrar dessa crônica? Simples. O momento em que vivemos remete à reflexão. Uma palavra que não sai do meu vocabulário, talvez estimulado por Zigmund Bauman, é o substantivo altruísmo. Até pensei em escrever uma crônica semelhante a do Ricardo Ramos, todavia não seria capaz. Bauman quando diz em suas obras, especificamente em sua última composição, “Retropia”, atenta-nos para a substituição do vocábulo “caridade” pelo generoso e humano “altruísmo”. Pode até soar como uma afronta, principalmente quanto à canonização dimensionada ao termo “caridade”. Este requer troca, espera-se algo pela permuta, mesmo a mais pura e doce alma; quando não há a espera que se lucre diante da bondade, o sociólogo polonês alerta-nos para o gesto humanitário, ou seja, estamos sendo altruístas. Colocamo-nos no lugar do outro, e através desta atitude, buscamos fazer sem “olhar a quem”. Há algumas semanas li em uma postagem de um amigo virtual, que aquele que faz o bem não fica postando ou se vangloriando de sua atitude. Exato! Isso é altruísmo, preocupar-se com o outro sem esperar o lucro. Talvez aí tenhamos um pouco dessa herança capitalista, cuja visão nos leva à obtenção de vantagens por tudo àquilo que fazemos.
O COVID-19, cientificamente denominado, porém popularmente substantivado como coronavírus (tudo junto mesmo, regras gramaticais) chegou a um momento em que a população mundial dividia-se, e a preocupação era demasiada em mostrar, de maneira acentuada, desculpem-me o pleonasmo, que à sua ideologia não poderá influenciar em sua conduta humana. Somos pertencentes à mesma raça, essa separação politizada, muitas vezes partidarizada, são necessárias sim diante desse regime democrático que toma conta de quase todo o planeta Terra. Entretanto, a partir do momento que estes se negam a ajudar ao próximo, estamos diante de um verdadeiro vírus: a desumanidade. Não pensar no outro, em um momento que vivemos uma pandemia (não é surto, endemia ou epidemia… é muito mais grave), é estar disposto a querer dizimar nossa população. Estamos lidando com um vírus ainda em estudo, apesar de muitos avançamos, porém é diferente da “gripezinha” propagada e alimentada por aí. Até o momento em que escrevo esta crônica são quase mil casos identificados pelo Ministério da Saúde e as demais Secretarias de Saúde dos Estados do nosso país. Países como Itália e Espanha já tiveram milhares de mortos devido à despreocupação dimensionada ao coronavírus em seu estágio inicial.
Chegou a hora de demonstrarmos o nosso real valor, como canta Moraes Moreira e os Novos Baianos, insistir em alguns substantivos como fez Ricardo Ramos ao narrar o circuito fechado daquela personagem. Rotina sim. Tédio para muitos, no entanto ficar em casa, neste momento de expansão viral, faz-se necessário. Sair, apenas com extrema urgência, e quando voltar é atender aos protocolos de higiene, mesmo sendo simples, que não dominávamos. O momento é para pensar, refletir, ajudar, exacerbar seu altruísmo, emanar humanidade. O toque, o beijo, o abraço, gestos característicos da população brasileira deixarão de existir momentaneamente, pois há uma intenção ainda maior para o nosso futuro: continuar nos abraçando, beijando. Nesse momento de atenção, reclusão, de circuito fechado (quarto, sala, banheiro, cozinha, computador, celular, filhos, redes sociais…), use a internet como uma ferramenta capaz de te ligar ao próximo. Não dissemine mentiras, não busque enaltecer ao ódio, ajude a humanidade. Faça videoconferências com sua família no almoço de domingo (lembre-se que usou muito o celular nesse almoço de domingo que julgava ser tão familiar…), poste informações, dados, instruções, que auxiliem nossa população. Arrecade, faça campanhas, ensine àquele que a solidão ainda o incomoda a driblar esse momento. Não faça tumulto, não deixe de cumprir às determinações emitidas pelos órgãos competentes. Nesse momento não existem imortais, faz-se necessário à busca por uma direção, e esta é humanizar-se ou tentar, pois há paradigmas tentando minimizar a situação porque deles não há como esperar o tão propagado substantivo altruísmo. Lamento. Não desistamos e sigamos nos ajudando. Em nosso vocabulário, altruísmo é o que não falta e o circuito encontra-se fechado.
*Prof. Sérgio A. Sant’Anna – Taquaritinguense. Professor de Redação e Língua Portuguesa na Rede Luterana de Ensino de Porto Alegre e Região Metropolitana; Professor na Rede Universitário de Cursinhos Pré- Vestibulares do Rio Grande do Sul e Professor de Atualidades e Redação do Certo Vestibulares em Porto Alegre.