Garantia de benefícios previdenciários aos LGBTs no Brasil ainda depende da Justiça
O número de casamentos entre pessoas do mesmo sexo no Brasil cresceu 61,7% em 2018, segundo o último levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O estabelecimento de um contrato jurídico de união entre LGBTs, além de suscitar discussões sobre igualdade e tolerância a diferentes grupos na sociedade, também permite com que seja estabelecido o direito a benefícios previdenciários a pessoas do mesmo sexo que se casam ou mantêm união estável.
Entretanto, de acordo com especialistas e a despeito dos avanços na discussão nos últimos anos, tais direitos ainda geram dúvidas entre a população LGBT e dependem do Poder Judiciário para que sejam garantidos, em razão da ausência de legislação específica. Exemplos são a garantia ao direito à licença-maternidade, o salário-família e o auxílio-reclusão.
“Todos os direitos trabalhistas e previdenciários devem ser garantidos, sem distinção de gênero ou orientação sexual, aos cidadãos LGBTs, tal e qual são garantidos aos cidadãos cisgêneros e heterossexuais. O fato de haver um relacionamento entre pessoas do mesmo sexo ou de um trabalhador se identificar como transexual não limita em nada o seu direito a um benefício ou a um direito. Logo, a eles também são garantidos os benefícios, desde que completem todos os requisitos exigidos pela legislação”, afirma Leandro Madureira (foto), advogado especialista em Direito Previdenciário e sócio do escritório Mauro Menezes & Advogados.
As dúvidas surgem, por exemplo, quando se trata dos requisitos mínimos para a aposentadoria dos cidadãos transsexuais, já que são diferentes as regras para homens e mulheres. O que o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), os regimes de previdência dos servidores públicos e o Poder Judiciário têm feito é analisar a data de preenchimento dos requisitos e compará-la com o momento em que o trabalhador ou a trabalhadora passou a se identificar, do ponto de vista jurídico, por outro gênero. Ainda assim, acontecem casos como o noticiado recentemente na mídia, em que um agente penitenciário transexual teve o seu pedido de aposentadoria indeferido em razão de haver “dúvida jurídica relevante” a respeito de sua identificação, conforme alegado pela autarquia estadual São Paulo Previdência (SPPREV).
Segunda Madureira, a solução para resolver um problema desse tipo é verificar se o processo de transição de gênero já foi completado no momento em que foram alcançados os direitos de aposentadoria. “Esse é exatamente o caso do agente penitenciário, tendo completado os requisitos quando ainda era uma mulher cisgênero. No caso, deve ser aplicada a legislação que contempla os requisitos indicados para as mulheres, ainda que o servidor tenha transicionado de gênero logo em seguida. Para fins de elegibilidade ao benefício, vale a regra aplicável no momento em que foi solicitada a aposentadoria”, analisa.
O especialista, contudo, ainda lembra que os problemas dos trabalhadores transexuais vão atualmente além do pedido de aposentadoria. “O índice de pessoas transexuais em empregos formais é baixo, em razão do evidente preconceito que a nossa sociedade carrega. O maior problema que a população transexual enfrenta é conseguir um trabalho formal”, alerta.
Judicialização
O indeferimento do pedido de aposentadoria, tal como no caso mencionado, pode ser contestado pela via administrativa ou judicial. O caminho de ingressar com ações na Justiça também tem sido utilizado por trabalhadores e segurados para garantir benefícios e direitos. “Não há uma previsão expressa quanto à licença-maternidade para o grupo LGBT, porém é de entendimento jurisprudencial que esse direito pode ser concedido, uma vez que é dado o benefício para quem adota ou recebe a guarda judicial. Ocorre que, na maioria dos casos, a concessão se dá apenas por vias judiciais”, exemplifica Thiago Luchin (foto), advogado previdenciário e sócio do escritório Aith, Badari e Luchin Advogados.
Segundo o especialista, o mesmo ocorre com o salário-família e o auxílio-reclusão. “O salário-família, juntamente com o salário-maternidade, é um dos benefícios que visa a cobertura dos encargos familiares e tem por objetivo a substituição da remuneração da segurada gestante durante os 120 dias de repouso, referentes à licença-maternidade, bem como a adotante que deverá se dedicar à criança pequena. O benefício é devido às seguradas e segurados que adotarem ou obtiverem guarda judicial para efeito de adoção. Desta forma, o casal homoafetivo que adota também possui esse direito e apenas um do casal terá o benefício. Já o INSS reconhece o direito à pensão por morte e auxílio-reclusão ao parceiro homossexual, mas somente após determinação da Justiça”, destaca.
Ainda em relação à pensão por morte, Leandro Madureira explica que, para obter esse direito, é necessário que o segurado prove que estava em um casamento ou união estável com a pessoa falecida. “Desde a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2011, reconhecendo o direito à união homoafetiva, os órgãos previdenciários não podem negar o direito ao benefício pelo único motivo de se tratar de relacionamento entre pessoas do mesmo sexo. Havendo união estável ou casamento e desde que a pessoa que faleceu se enquadre como segurado da Previdência, surge o direito à pensão. Os requisitos são exatamente os mesmos exigidos para as pessoas que não façam parte de uma relação homoafetiva”, afirma.
O fato de haver uma diversidade de regimes próprios de Previdência espalhados pelo país, contudo, também aumenta a possibilidade de casos em que haja dificuldade para a concessão de benefícios. “Toda e qualquer decisão administrativa que seja atentatória ou discriminatória em relação ao direito de um cidadão LGBT deve ser discutida judicialmente, já que o Judiciário evoluiu muito na extensão do mesmo direito aos cidadãos que se reconheçam como LGBTs. Há ainda notícia de alguma resistência no registro de filiação de filhos de pessoas do mesmo sexo, mas a jurisprudência dominante é no sentido de equalizar esses direitos”, analisa.
O advogado trabalhista do escritório Stuchi Advogados Anderson Santos da Cunha (foto) também frisa que a igualdade de direitos se trata de uma previsão da Constituição Federal e abrange questões trabalhistas, além das previdenciárias.
“O art. 5º da Constituição dispõe que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, o que nos permite afirmar que o trabalhador e a trabalhadora LGBT têm todos os direitos garantidos, tais como a relação de emprego protegido contra dispensa arbitrária ou sem justa causa, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), salário mínimo fixado em lei, piso salarial, 13º terceiro salário e jornada não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais”, destaca.
Histórico de avanços
Anderson Santos afirma que o Brasil tem um histórico de reconhecimento dos direitos LGBTs que teve início no ano de 1830, quando o país foi a primeira nação das Américas e uma das primeiras do mundo a descriminalizar a homossexualidade. Nas últimas décadas, tem avançado o debate sobre a igualdade de direitos entre casais LGBTs e heterossexuais e a respeito do combate à discriminação, de modo que o Brasil, apesar de ser considerado o país onde mais ocorrem crimes de ódio contra LGBTs no mundo, criminaliza hoje a homofobia.
Para o advogado, contudo, ainda que haja diversos projetos em tramitação no Congresso Nacional a respeito do tema, a falta de atuação do Legislativo contribui para o processo de judicialização das questões LGBT. “A violência e a discriminação ainda ocorre em níveis inaceitáveis, que somente poderão ser reduzidos por um conjunto de fatores, que incluem medidas legislativas e, principalmente, o fortalecimento da educação para o respeito à diversidade. Apesar dos desafios, não resta dúvida de que o Brasil tem avançado a passos largos rumo à cidadania plena da população LGBT”, defende.
Atualmente, a lei autoriza a união civil entre pessoas do mesmo sexo, além de tratar a discriminação aos LGBTs como crime. Já o casamento e a adoção de crianças são garantidos apenas pela Justiça. “Todos os direitos conquistados pela população LGBT vieram por meio de decisões do Judiciário. O caminho normalmente acontece assim: alguém entra na Justiça pedindo que seus direitos sejam respeitados. Um juiz ou uma juíza acata o pedido. Desta decisão, cria-se uma jurisprudência e, a partir de então, muitas outras pessoas passam a usufruir desses direitos”, analisa.
Na visão da advogada trabalhista do escritório Aith, Badari e Luchin Advogados Bianca Canzi (foto) , mesmo o Poder Judiciário hoje ainda deixa a desejar quando se trata da igualdade de direitos aos LGBTs. “O reconhecimento ainda é tímido, mesmo porque, há poucas ações judiciais em trâmite. O tema é de muita relevância, tendo em vista não haver uma regulamentação clara ou precedentes dos tribunais superiores. O caminho é buscar o Judiciário para ter garantido o seu direito”, aconselha.