Resenha: A angústia da impunidade – ainda está aqui
Impressões sobre o filme de Walter Salles.
Por: Isabela Nascimento*
O tão esperado e indicado para representar o Brasil no Oscar deste ano – Ainda estou aqui – traz um elenco de peso para contar a história de Rubens Paiva, o ex-deputado que foi um dos primeiros políticos cassados no golpe militar de 1964. O filme é inspirado no livro autobiográfico escrito pelo único menino entre os cinco filhos do casal Rubens e Eunice: o escritor Marcelo Rubens Paiva.
Dentre as tantas camadas que o filme nos apresenta, muito me comoveu o modo como uma dor tão grande (o desaparecimento do marido durante a ditadura militar) é vivida no sussurro. O que vemos é uma angústia pública sendo abordada de modo intimista. Uma mudança drástica de vida que se desenrola sutilmente. Essa maneira de sofrer vem de Eunice Paiva, a esposa e viúva, interpretada pela gigante Fernanda Torres.
Ao mesmo tempo em que a mãe de cinco filhos está sempre em estado de alerta pela iminência da perseguição militar (veja pela própria capa do filme, seu olhar atento ao redor), é ela também quem encaminha – com amor e sutileza – os filhos para uma nova realidade. É a resiliência daquela que, na dor, inicia uma transformação de si mesma para buscar justiça, tornando-se advogada e ativista dos direitos humanos.
Confesso que algumas quebras de expectativa me ocorreram, pois levei comigo a espera por cenas mais coléricas, como por exemplo, em relação à personagem Vera (filha mais velha), que prometia protagonizar momentos impactantes e de destaque dentro da trama.
Entretanto, é o desfecho do longa que guarda dois aspectos simbólicos: o primeiro é a menção à Comissão Nacional da Verdade – instituída por Dilma Roussef em 2012 para investigar as graves violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura. É o momento em que política e o cinema se mesclam e nos recordam que a ficção está toda feita da realidade, não só a da família Paiva, mas também a de tantas outras famílias que perderam seus entes de maneira cruel, sem nunca encontrarem seus corpos. A Comissão da Verdade deu às vítimas algum conforto e dignidade diante de horrores abafados por tanto tempo.
O segundo aspecto fica por conta de Fernanda Montenegro: em cinco minutos de cena – interpretando Eunice na velhice – faz o telespectador chorar. A atriz de 95 anos carrega em seu olhar toda a vida que acompanhamos durante o filme. Dói muito quando a matriarca, apática e perdida na doença de Alzheimer, volta à consciência com a matéria transmitida na televisão sobre as investigações acerca da ditadura. É nesse momento que o título do filme faz todo sentido: Ainda estou aqui – em meu ponto de vista – é uma fala de Eunice diante da doença que degenera o seu “eu”. Dentro de uma memória adoecida, ainda mantinha viva a lembrança da injustiça e da luta que travou. Resistiu e recordou até o fim.
Por fim, para quem espera muita euforia e movimentação, a trama se faz e comove justamente pelo oposto. Pelo não-dito, pela contenção no jeito de sofrer e pela garra no jeito de lutar: sorriam! Um filme que precisa ser visto por todo brasileiro, inclusive por aqueles que, embora sem a doença de Alzheimer, transformaram em esquecimento e distorção um período tão sombrio de nossa história.
*Isabela Nascimento é Professora de Redação e Espanhol, Bacharela em Letras e Mestra em Estudos Literários.
**Os artigos publicados com assinatura não manifestam a opinião de O Defensor. A publicação corresponde ao propósito de estimular o debate dos problemas municipais, estaduais, nacionais e mundiais e de refletir as distintas tendências do pensamento contemporâneo.