Artigo: Muro de Berlim imaginário
Por: Carlos Galuban Neto*
Não se sabe se pelos motivos corretos – é bastante provável que não – mas, na semana que se encerra, os deputados brasileiros fizeram uma boa ação: aprovaram projeto de lei que suspende decretos presidenciais que impunham mudanças ao Marco do Saneamento Básico, sendo a principal delas a relativização da exigência de licitação para que empresas estatais sigam prestando serviços de saneamento aos municípios do país.
Tal exigência foi estabelecida com a finalidade de obrigar as empresas estatais do setor a melhorarem os serviços prestados e, consequentemente, permitir que companhias privadas também possam participar de processos licitatórios, aumentando o universo de empresas aptas a atuar no saneamento básico.
Os fatos davam razão ao Marco do Saneamento: em 2020, antes de sua entrada em vigor, 16% dos brasileiros não tinham acesso à água tratada e 47% não estavam conectados à rede de esgoto; além disso, apesar do predomínio das empresas estatais no setor, o investimento para alcançar a universalização do saneamento até 2033, que deveria estar em torno de 24 bilhões por ano, atingia apenas a metade disso.
Ao derrubar a obrigatoriedade de licitação e, portanto, permitindo que empresas estatais continuem prestando serviços a despeito de comprovarem ou não que são qualificadas para tanto, Lula comete erro de dupla natureza.
Do ponto de vista político-pragmático, o presidente se indispõe com o Congresso Nacional, cujo apoio para a reforma tributária é essencial, uma vez que busca, mediante decreto, modificar legislação amplamente debatida por deputados e senadores há menos de 3 anos.
Já sob uma ótica político-ideológica, Lula parece ter dado ouvidos à parcela da esquerda brasileira que, ainda presa nos anos 60, ainda promove associações infantis como “se é da iniciativa privada, não presta” e “se é do Estado, todos os nossos problemas estão resolvidos”.
Acontece que o mundo é muito mais complexo do que sonham as vãs militâncias, não sendo possível, em pleno século XXI, com a quantidade e qualidade de dados à disposição, governos basearem suas decisões tão somente em preconceitos ideológicos.
Não se trata de defender incondicionalmente a iniciativa privada, que está longe de, sozinha, oferecer respostas eficazes para boa parte dos problemas. Na verdade, o que se busca é compreender que, na formulação de qualquer política pública, é obrigação do gestor público recorrer a todas as evidências disponíveis para chegar a resultados que apresentem a maior eficiência possível e, consequentemente, atendam às demandas mais urgentes da população.
A solução, portanto, é deixar de lado gritos de guerra ideológicos, a favor ou contra a iniciativa privada e/ou a atuação estatal, e se voltar para um singelo questionamento: o que os dados nos dizem?
A ciência, tão (corretamente) defendida pela esquerda brasileira em tempos de pandemia, tem muitas outras utilidades fora do campo médico. Basta derrubar o Muro de Berlim imaginário que insiste em nos separar.
*Carlos Galuban Neto é advogado formado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
**Os artigos publicados com assinatura não manifestam a opinião de O Defensor. A publicação corresponde ao propósito de estimular o debate dos problemas municipais, estaduais, nacionais e mundiais e de refletir as distintas tendências do pensamento contemporâneo.