16 de novembro de 2024
Geral

Crônica: Ainda é coisa de preto ainda?

Por: Prof. Sérgio A. Sant’Anna*

De repente eles olharam e começaram a zombar, a fazer aquela zueira que a criança na sua ignorância pueril não se atreve a contestar, principalmente quando muitos estão à sua volta aplaudindo ao que faz o show e não ao centro do espetáculo. Esta atitude era normal aos olhos dos demais, até os próprios professores ignoravam aqueles ataques. Encaravam-lhes como típicos de uma adolescência precoce ou uma infância retardada. Talvez aquilo fosse mais um ritual, um momento pelo qual tinha que passar. Enfrentar ao medo, romper às barreiras do vazio e agregar-se ao grupo. Daqui a pouco eu seria mais um. Ao grupo se avolumavam novos membros, mas mesmo naquele cercado ainda éramos vítimas. Mas por quê?

A leitura tirou-me desse fosso, desse terreno abissal. A luz da história, da literatura, da cultura, acendeu-me. Foi assim ao longo de séculos, uma relação doentia, um contato mantido pela subordinação, pelo desprezo, pela alienação, pela ausência de opinião dos que não sofriam. É muito fácil posicionar-se ao lado do caçador ou mesmo manter-se distante da situação quando o seu clã não foi atingido (sua família também), quando o humano perseguido é o outro.

Percebi que aquelas correntes que amarraram aos meus antepassados não foram quebradas com uma pena imperial, pelo contrário, serviu para marginalizá-los. Quem daria emprego a um negro? Onde eles morariam? Como sobreviveriam? A sociedade brasileira virou-se de costas a estes humanos, impediu-os do progresso, da participação nos lucros, da busca por melhores condições. Os cortiços, subúrbios, guetos, favelas foi o que conseguimos até pouco tempo (e ainda hoje essa realidade é vista). Não pensem que não lutamos, batalhamos sim, buscamos a cada dia driblar essa sua arrogância, esse seu desdém com esforço, suor, lágrimas, enfim, talvez, sentimentos que você não passou por ser uma vida toda o chefe, o protagonista da telenovela, o modelo endeusado pela maioria dos dogmas, o Deus que todos sonharam.

É muito fácil bradar: “o branco também sofre preconceito”, sofre sim. Assim como o deficiente, assim como as mulheres, assim como os homossexuais, assim como os judeus, assim como os evangélicos, mas quando tu és impedido de progredir porque te classificam como contraproducente pela sua etnia, associamo-nos a um passado de terror, a um mundo não-distante de horror. Gritos, açoites, chicotes, cortes, mortes… Talvez, você, por ser como aquele que doutrinou não queira perder sua hegemonia, porém jamais foi impedido de prosseguir seus estudos ou mesmo de conquistar o emprego dos seus sonhos por ser negro. Podes ter sido impedido por sua incapacidade intelectual, mas não foi barrado por ser associado ao filho da favela, aquele que dá umas bandas, curte um funk, pega as mina, aquele que só curte hip hop.

Quando chegava em casa, às vezes, não pegava no sono; durante muito tempo convivi com a insônia, minha mãe reafirmava: “estudar é preciso”. E tudo aquilo me valeu. Sei que durante anos ela procurou ajuda: psicólogo, psiquiatra (encheu-me de remédios), padre, espíritas etc., pois eu tinha alguma coisa. Não era normal! Um menino com aquela idade (onze anos) não querer ir à escola e não conseguir dormir ao chegar da noite. Mas o preconceito alimenta isso. Quando tu não és aceito pela turma por seu comportamento arredio, hostil tem lá suas adversidades (mas é algo que, também, vem sendo estudado), no entanto quando não és aceito pela sua cor, como eles diziam, aí o problema é gravíssimo. A questão é social. E quem estas com o problema não é o negro, mas aquele que torna a subjugá-lo a querer que ele retorne a uma senzala, a querer que ele seja o subordinado, a ser o humano marginalizado.

Nunca entendi porque aquela dona da locadora (sim, aquela das fitas de videocassete) não acreditava que eu era filho do meu pai, explico. Minha mãe é negra, filha de baianos e neta de escravos, e meu pai branco (italianos e espanhóis), portanto a dúvida da Dona era se aquela paternidade se enquadrava em mim (talvez ela não conhecesse Biologia, fugiu dos bancos escolares, mas acredito que não, o preconceito saía pela sua saliva); por que será que aquela assistente social (ainda viva na cidade onde nasci) implicava comigo todas às vezes que me via numa parada de ônibus indo para casa de meus avós? Cismava com o que eu tinha na sacola. E aqueles policiais que a acompanhavam também. Uma certa vez quebraram os copos que levava para minha avó. Disseram que era uma revista por parte daquela assistente social. Mas eu sabia que o preconceito rondava. E os demais passageiros que ali estavam na parada? Na vida profissional já fui por diversas vezes menosprezado por olharem e já imprimirem uma opinião, principalmente em entrevistas, por isso quando descobri que o conhecimento poderia me levar ao longe tratei de me apegar. Ler, ler, debater, discutir, buscar, sugar ao experiente e mostrar que a minha diferença estava exclusivamente na minha vontade, no meu conhecimento, na oportunidade que me deram, naqueles que nunca se esqueceram de mim, dos amigos que me diziam que és possível. Mas não podemos nos esquecer daqueles que são humilhados, mortos, assassinados só porque são negros e por serem negros são confundidos com bandidos. Aqueles que a oportunidade não bate à sua porta devido ao abismo social brasileiro. São carimbados e rotulados como uma peça a ser menosprezada, desvalorizada, comercializada.

E quando surgem comportamentos e frases muitas vezes consideradas banais, como a do jornalista William Waak e, também, a do antigo Boris Casoy, não podemos nos calar, porque a desordem não é só causada pelo negro como supôs o âncora do Jornal da Globo, na época, o ser humano faz isso (algo que não deveria ser feito por uma questão ética), independente da etnia. E discursos em favor do jornalista demonstra um corporativismo, não entre jornalistas e amigos do ex- global, mas de uma parte da sociedade alimentada pela subordinação do outro, que não aceita o negro no poder. Isso é claro e evidente quando atentam contra a vítima e alavancam o autor do racismo como vítima. O jornalista pode ter errado como muitos erram, porém alimentar o racismo e querer impô-lo como opinião aí já é demais. Racismo é crime e quem o comete deve ser julgado (talvez não por uma Inquisição Facebookiana ou Mídias Sociais) e pagar pelos seus atos, pois não é assim que bradou o jornalista, durante décadas, ao noticiar aquele que comete um crime?! Lutar pela pacificação não significa concordar com essa onda absurda de menosprezo pelas minorias e um discurso de inversão. Seja humano sim, mas não hipócrita diante desses que tumultuam e prezam pela castração das diferenças.

P.S.: Escrevi este texto em novembro do ano de 2018, entretanto parece que nada mudou. Além de inúmeros brados considerados injúria racial e racismo nada é feito. O que mais indigna é que o paradigma-condutor alinhava-se à Casa Grande e marginaliza a Senzala (antes fosse apenas o pleonasmo). Pelas Marielles, Marias, Madalenas, Conceições, Djamilas, Antonietas, Margaretes, Antônios,  deste País e que o 20 de novembro não seja apenas um feriado…

*Sérgio Sant’Anna é Professor de Redação no Poliedro, Professor de Literatura no Colégio Adventista e Professor de Língua Portuguesa no Anglo.

**Os artigos publicados com assinatura não manifestam a opinião de O Defensor. A publicação corresponde ao propósito de estimular o debate dos problemas municipais, estaduais, nacionais e mundiais e de refletir as distintas tendências do pensamento contemporâneo.