Artigo: Vivências que não se esquece
Por: Luís Bassoli*
Minha avó paterna, Iside Guidorzi, morou na Itália, exatamente na Primeira Guerra Mundial, início do século 20.
Findo o conflito, os ressentimentos entre os italianos levaram meu bisavô Enrico Guidorzi a trazer a família de volta ao Brasil.
Minha avó, pré-adolescente, retorna à Guariroba, sua terra natal, conheceu o conterrâneo Eitel Bassoli, meu avô (filhos de italianos), seguiu-se a vida.
Vó Iside era uma excepcional cozinheira, exímia mesmo, um talento apuradíssimo, fazia magia, requintados pratos da culinária da Lombardia, norte da Itália.
Tudo produzido no enorme quintal, uma bela horta, cenoura, alface, pimenta; fileiras de milho, divididas por canaletas de irrigação, café; galinheiro, um chiqueirinho para dois ou três porcos, o cercadinho pra cevar o carneiro, um curralzinho da vaca leiteira; pomar variado, laranja, limão, jabuticaba, caju, carambola.
Só o sal era comprado.
Todo domingo, o almoço; as ceias especiais nos dias especiais Natal, Páscoa e tais.
O prato principal, o Capeletti, em sopa, feito à mão, chapeuzinho por chapeuzinho, centenas deles, recheados, aleatoriamente, de carne suína e frango.
Muito raramente, só quando alguém pedia, minha avó fazia o Tortéi, o capelletti recheado de abóbora.
O fazia com esmero, mais uma iguaria de sua lista de delícias – só que ela mesmo não comia, “não gostava”, o que nos intrigava, a garotada.
Na adolescência, viemos a saber o porquê.
O tortéi teria surgido para adaptar o capelletti à escassez de carne nos tempos difíceis vividos na Europa, com o cuidado de “disfarçar” para as crianças – a abóbora, de fácil produção, era apropriada ao paladar infantil.
Mas o sabor, o aroma, a visão do tortéi ficaram fixados na mente da minha avó, relacionados à melancolia dos momentos soturnos da Primeira Guerra.
Não havia imagens das tragédias, do morticínio, dos massacres, mas havia sinais da tristeza: o tortéi era o peculiar.
Vó Iside foi feliz, com os filhos, netos e bisnetos, viveu até os 98 anos, e em todos eles foi acompanhada das lembranças da ignomínia da guerra.
A palavra “mussolini” era impronunciável na casa de meus avós, ordem tácita que veio de meus bisavôs, os quais não conheci.
Um século se passou; hoje somos assolados por imagens, em tempo real, diuturnamente, pela internet, do genocídiø de um povo: milhares de crianças dilaceradas, grávidas mutiladas, idosos assassinados, milhões de pessoas desalojadas de suas casas, a morrer de fome, de doença, sem água pra beber.
A Palestina será nosso tortéi, angústia que carregaremos pro resto de nossas vidas.
E alguns nomes haverão de ser impronunciáveis.
* Luís Bassoli é advogado e ex-presidente da Câmara Municipal de Taquaritinga (SP).
**Os artigos publicados com assinatura não manifestam a opinião de O Defensor. A publicação corresponde ao propósito de estimular o debate dos problemas municipais, estaduais, nacionais e mundiais e de refletir as distintas tendências do pensamento contemporâneo.