Artigo: Às moscas
Por: Rodrigo Segantini*
O escritor William Golding foi premiado com o Nobel de Literatura em 1983 e é considerado um dos maiores autores de língua inglesa de todos os tempos. Sua obra-prima é “O Senhor das Moscas” e foi escrita em 1954. Nela, o autor trata de uma situação em que um grupo de meninos, por uma circunstância do enredo, acabaram sozinhos em uma ilha inabitada. Havendo necessidade de se organizarem como sociedade, estabeleceram um sistema hierárquico de comando e distribuíram tarefas entre si, à falta de alguém que pudesse impor ordem àquela situação. Com o tempo, por imaturidade própria da idade dos garotos e pela maldade inerente à condição humana, o agrupamento começou a desmoronar – até que, inesperadamente, um adulto chega ao local para resgatá-los e então os jovens se dão conta de seus erros.
Parece-nos que alguém quis tentar replicar na vida real a situação que Golding narra em seu romance transformando a Casa Abrigo no cenário da narrativa e as crianças lá abrigadas nos personagens do livro. Segundo relatos que estão pipocando nas ruas da cidade e na imprensa local. Consta que as crianças em situação de risco e vulnerabilidade estão relegadas a uma condição de penúria e abandono gravíssima e cuja solução, por incrível que pareça, é facílima. No entanto, uma vez que as denúncias vieram à tona, pareceu que era mais urgente achar culpados do que resolver o problema.
As crianças que estão na Casa Abrigo não estão lá porque querem ou porque a passeio. Elas estão lá porque foram abandonadas por seus responsáveis ou porque se encontram em situação em que não há uma pessoa que possa se responsabilizar por elas. Há ainda aquelas que estão lá por ordem judicial por se encontrarem em uma situação de tamanha gravidade que é como se, mesmo estando sob os cuidados dos pais, é como se não estivessem. Porém, do tamanho que dizem que as coisas estão na Casa Abrigo, a impressão que se tem é que melhor seria se essas crianças continuassem correndo o perigo em que se encontravam.
Para ser bem sincero, tudo o que sei a respeito dos fatos é de ouvir falar, é do que está sendo comentado nas ruas e do que tem sido falado nos jornais e na rádio, sobretudo pelo meu amigo Auro Ferreira. Mas, mesmo que eu não tenha um conhecimento presencial de tudo o que tem sido tratado sobre a Casa Abrigo e a situação em que se encontram as crianças ali abrigadas, o que claramente tem se verificado é um jogo de empurra-empurra em vez de realmente promover o que for necessário para superar os aparentes problemas registrados.
Pouco importa se a falha é da Prefeitura, dos vereadores, do Ministério Público, do Juízo da Infância e Juventude, do Rotary Club, da Sociedade Vicentina ou do Cirque du Soleil. Existe um problema e deve ser resolvido: crianças que estão sob a responsabilidade da Casa Abrigo podem estar passando fome, podendo estar precisando de assistência médica e de medicamentos, podem estar vivendo em um ambiente pouco salutar ou mesmo insalubre. Se isso for mesmo verdade, se realmente as crianças abrigadas estão nestas condições, dizer que não há problema algum porque todos os documentos estão em ordem é querer tampar o sol com uma peneira; porém dizer que a culpa de isso estar acontecendo é da ONG que foi contratada para administrar o lugar é uma omissão criminosa.
Se não sabemos de quem é a culpa por tudo o que tem se dito que há por lá, de uma coisa não resta qualquer dúvida: a responsabilidade por resolver tal problema é nossa, de todos nós. Cada vez que ouço Auro Ferreira tocando no assunto pelas ondas da rádio, me corta o coração. Porque o alcance da transmissão da emissora onde veicula seu noticiário é amplo e sua audiência é altíssima. Dezenas de milhares de pessoas na região inteira ficam sabendo que em Taquaritinga as crianças que foram abrigadas porque viviam em condições precárias agora estão enfrentando situações ainda piores do que aquelas. Dá a impressão que a cidade inteira, que todos os taquaritinguenses estão deixando de cuidar destes pequeninos. E a verdade é que Taquaritinga é uma terra hospitaleira, de gente boa, trabalhadora e honesta. Precisamos dar um jeito de resolver essa situação ajudando não a ONG, não a Prefeitura, não a Casa Abrigo – ajudando as crianças que estão lá. Ficar esperando as “autoridades” tomarem uma providência (como lhes cabe, afinal) é concordar com tudo de ruim que pode estar acontecendo. O que de pior uma pessoa boa pode fazer na vida é deixar de fazer o que pode ser feito.
Em “O Senhor das Moscas”, as crianças acabam tendo suas personalidades degeneradas por causa da situação em que se encontram. No desespero, elas acabam recorrendo a práticas de violência e de terror para enfrentarem as adversidades do lugar em que estão. O personagem “Senhor das Moscas” é uma entidade inventada por eles para justificarem tudo de ruim e de mal que acham que podem estar lhes acontecendo. No final da narrativa, quando os meninos são resgatados, é revelado que, apesar de tudo, depois de tudo o que passaram, ainda são crianças inocentes e que precisam ser cuidados. As crianças da Casa Abrigo também precisam ser cuidadas e não podem ser deixadas às moscas, como se estivessem abandonadas em uma ilha deserta. A vida não é um romance de um autor laureado, a vida é muito mais do que isso e urge providências das pessoas de bem. Afinal, quem ama cuida.
*Rodrigo Segantini é advogado, professor universitário, mestre em psicologia pela Famerp.
**Os artigos publicados com assinatura não manifestam a opinião de O Defensor. A publicação corresponde ao propósito de estimular o debate dos problemas municipais, estaduais, nacionais e mundiais e de refletir as distintas tendências do pensamento contemporâneo.