Artigo: O sal da vida
Por: Prof. Sergio A. Sant’Anna*
Hoje eles não comeram, pois desapareceram. Há duas semanas que passo próximo àquele viaduto e vejo aquela família de venezuelanos debaixo dele. Um homem, uma mulher e dois meninos. Não sei os nomes, tentei perguntar, porém se esconderam. Correram para baixo de uma barraca coberta com sacos de lixo. Descalços. Poucas roupas com aquele vento frio. Disseram-me que desembarcaram há alguns meses, entretanto, ali no viaduto, moram há poucas semanas. Não contam da sua vida pessoal, relatou-me um empresário que tem seu estabelecimento próximo ao viaduto. Os alimentos são todos doados, pois dinheiro não possuem, trabalho não acharão.
No domingo passei por ali, acenaram-me. Também os saudei. Mas começaram a me chamar. Pouco entendia o que diziam. Corri. Uma das crianças espumava. O cão também. Gritei para os estabelecimentos que ficam ali ao redor. Ninguém quis saber. Diziam que a responsabilidade era do Estado. Um até me disse que era o Maduro quem tinha que acudi-los. Chamei por uma ambulância. Velozmente o motorista e seu ajudante desembarcaram. Botamos a criança dentro do veículo. Acompanhei o pai, enquanto a mãe ficou na barraca com o outro. Não sabiam nada sobre a covid-19, muito menos sobre os métodos de higienização. A máscara que guardara na mochila dei ao pai para adentrar ao hospital. Perguntaram o nome do filho ao pai, ele não sabia. Lembrei-me de “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos.
Esperei duas horas naquela portaria, o pai saíra cabisbaixo, choroso, lágrimas goticulando. O guri morreu. A causa da morte era o veneno. O mesmo que alimentou o cachorro. Paguei um táxi e retornamos para debaixo do viaduto. A mãe e a outra criança espumavam também. Mas nada pudemos fazer, estavam sem vida. Foram envenenados. O sal que receberam num copo de vidro na noite anterior para temperar o alimento, que o pai não comera para sobrar mais aos seus entes, era soda cáustica.
*Prof. Sergio A. Sant’Anna – Professor de Redação nas Redes Adventista e COC em SC e jornalista.
**Os artigos publicados com assinatura não manifestam a opinião de O Defensor. A publicação corresponde ao propósito de estimular o debate dos problemas nacionais e mundiais e de refletir as distintas tenências do pensamento contemporâneo.