Literatura engajada: há ourives aos montes
Por: Prof. Sergio A. Sant’Anna
Na semana passada, ao chegar aquele feriado prolongado para muitos, estava corrigindo redações, elaborando uma apostila para o curso de Língua Portuguesa para concursos do Tribunal de Justiça e Polícia Civil aqui de Santa Catarina, preparando aulas para a segunda-feira (11-10), pois haveria um dia preenchido. Nesse ínterim, aproveitei para assistir dois documentários. Busquei na música essa imersão. Esse momento menos profissional, e mais pessoal. Porém, a trégua acadêmica aconteceu apenas na escolha das películas, pois no momento em que a plataforma de streaming começou a rodar (esse termo parece arcaico para os dias atuais, todavia confesso nutrir uma paixão avassaladora pelo mesmo) os filmes começou a reflexão. Primeiro, Axé; em seguida, O barato de Iacanga. Documentários que falam da música brasileira em distintos momentos. Este, sobre o festival de Águas Claras; aquele, sobre a música desenvolvida na Bahia. A realização de tal feito cultural só é possível graças a liberdade de expressão adquirida ao longo desses anos pela nossa jovem democracia.
Nossa abundante cultura não pode estar distante dos problemas que afligem nossa sociedade. E a Literatura, dentro desta bolha, não deve ser refém apenas de narrativas que amealham nosso raciocínio, deixam de instigar nosso pensamento e tratar apenas de nenúfar sentimentos. A Literatura deve ser engajada. O texto foi tecido, elaborado, lapidado, portanto, encontre-se à estética, contudo não se afaste de situações-problema. O onírico, sonial, acontecem, entretanto não serão regra. A Literatura nasce dessa angústia visceral do ser humano perante o mundo. A Literatura não deve economizar. Principalmente neste atual cenário que o caos assalta. Chegou o momento de cindir com essa literatura barata, despreocupada com o País. Calcada no enriquecimento financeiro através da venda desses almanaques de autoajuda. Uma literatura vã. Apática. Antônima ao empático. Soletrada aos barrancos a fim do lucro fácil e vil.
Quando os documentários acima mencionados são assistidos há a imersão em um contexto histórico conturbado, questionado pela música, seus intérpretes, compositores e fãs. Estes que distintos dos pertencentes a está pós-modernidade, seguiam-nos em busca da reflexão. Uma sonoridade que se espalhava, porém não era o essencial. A letra sim deveria emergir. E nestes documentários acompanhamos uma geração que almejava questionar, buscar a liberdade tolhida, os direitos engavetados, os entes enclausurados e torturados. Na Bahia o axé tornou-se sinônimo de alegria e contagiou o Brasil. Iluminou multidões, acariciou corações, todavia o trio elétrico que do som se adonou, logo ganha as letras de Morais Moreira, passa pelas figuras de linguagem de Caetano e Gil; porém é nos movimentos marginalizados, periféricos que o social é enxergado e salta para o mundo com Paul Simon, Sting e Michael Jackson. Som, letra e reflexão juntam-se dando voz aos excluídos. Sim, nós podemos! Já em “O barato de Iacanga” desfila o afrontar, o questionar, o desobedecer aquela marcha com coturnos duros e borrachudos que flertavam com a ignorância e da violência se extendiam, alimentando-se dos cadáveres sem lápides. Era necessário lutar, porém as palavras muniam o bélico, somados à música e à liberdade. A história não tardaria em sair daquele momento jurássico e ganhar novas e importantes cenas, vivas até hoje em nossas legítimas ações.
Em momentos como o que a escritora Conceição Evaristo põe Anne Frank em diálogo com o seu passado em Minas Gerais, a situação de milhões de brasileiros, isolados, que vivem à margem da sociedade, dependentes de um plano social federal capenga, apenas eleitoreiro, encorpam-se e ganham vida. Aí sim, a Literatura torna-se imensurável. Esta Literatura não pode ser reconhecida apenas pelos andrajos. Seus feitos e amparos necessitam serem deslumbrados. O papel do ourives deve ser exaltado, assim como os diamantes que pululam deste lapidar. Através de Conceição Evaristo visitamos o Quarto de despejo, O manual antirracista, O avesso da pele, Torto arado, Marrom e amarelo, O peso do pássaro morto entre outros. Uma Literatura que traz à tona o engajamento dantes. Literatura que ativa os neurônios e faz pensar.
Não podemos mais ficar reféns da normalidade literária. Aquela água com açúcar. Feita para embalar a criança. Esta Literatura que desponta é do ourives, pois um diamante é um pedaço de carvão que saiu sob pressão. Só brilhou depois de muito lapidar.
*Prof. Sergio A. Sant’Anna – Professor de Redação nas Redes Adventista e COC em SC e jornalista.
**Os artigos publicados com assinatura não manifestam a opinião de O Defensor. A publicação corresponde ao propósito de estimular o debate dos problemas nacionais e mundiais e de refletir as distintas tenências do pensamento contemporâneo.