Artigo: Vacinômetro do Jair
A cortina de fumaça bolsonarista para desviar o foco da falta de vacinas.
Por: Evandro Camargo*
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tem publicado, desde o último domingo (28/3), dados referentes à quantidade de doses de vacinas contra a covid que foram distribuídas e aplicadas em cada unidade da Federação. Os últimos dados divulgados antes do fechamento desta matéria, apresentavam um total de 45.206.666 doses distribuídas para 24.841.817 doses aplicadas. A narrativa que levanta suspeita sobre governadores e prefeitos, tendo em vista a diferença entre vacinas distribuídas e aplicadas, como se eles estivessem “escondendo” vacinas para “desestabilizar” o governo Bolsonaro[1], foi incorporada também pelo Presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, após a primeira reunião do Comitê de Combate à Covid. Lira ainda suavizou a suspeita levantada, justificando a diferença pelo atabalhoamento da crise ocasionada pela pandemia ou ainda devido à burocracia de informação por parte de governos estaduais e municipais.
Em Taquaritinga, uma emissora de rádio FM também tem propagado esta narrativa questionando a diferença entre vacinas distribuídas e aplicadas, a despeito das taxas de 92,29% (7.205.119 doses aplicadas para 10.388.018 doses recebidas[2]) de vacinas aplicadas do total recebido no estado de São Paulo e 79,02% (9.616 doses aplicadas para 12.169 doses recebidas[3]) no município de Taquaritinga. De acordo com a Secretaria Estadual de Saúde, Taquaritinga ocupa a posição 237º no ranking de vacinação do estado de São Paulo com 12,8% da população imunizada com a primeira dose.
Mas por que esta sobra entre doses distribuídas e aplicadas se temos pressa em vacinar a população? O que Governadores fizeram com as outras 20.364.849 (diferença entre doses distribuídas e aplicadas conforme dados divulgados pelo Presidente)? Isso acontece, em parte, porque entre sair da fábrica e chegar aos braços dos brasileiros leva algum tempo, e esse descompasso varia entre os estados. Outra parte desta diferença, dizem os especialistas, é explicada pelo cadastro mais completo que a vacinação contra a Covid exige e o tempo que cada estado leva para efetuar o repasse dos dados às secretarias e ao Ministério da Saúde, uma vez que o governo federal não colocou em funcionamento um cadastro nacional que pudesse ser acessado por todos e que garantisse apoio técnico necessário aos estados e municípios menos estruturados ou ainda com dificuldade de acesso a internet.
O presidente do Fórum de Governadores, Wellington Dias, do Piauí, disse que as doses ainda não aplicadas são também para a chamada reserva técnica. De acordo com o governador, cerca de 600.000 doses compõem esta reserva técnica, para casos de imprevistos e situações de emergência. Além disso, tem a segunda dose que até dia 20/3/2021[4] precisava ser reservada conforme orientações do próprio Ministério da Saúde, o qual já havia anunciado em fevereiro, que não haveria mais necessidade de reserva de estoque para a segunda dose, mas voltou atrás por dificuldades na produção e na chegada de insumos para a fabricação das vacinas. Esta reserva, que totalizaria mais 19.468.047[5] doses armazenadas por estados e municípios, deve ser aplicada já em abril e governadores e prefeitos têm se debruçado sobre o planejamento e ajuste da estratégia para acelerar a vacinação. Portanto, este clima de incerteza, falta de coordenação e credibilidade do Ministério da Saúde é o principal responsável pelo ritmo lento da vacinação, não havendo qualquer indício ou justificativa plausível para se esconder vacinas, francamente!
O Ministério da Saúde já alterou o cronograma de entrega de vacinas do Plano Nacional de Imunização – PNI em pelo menos seis (6) ocasiões[6], o que ocasiona a lentidão da vacinação e provoca um clima de insegurança entre os estados e municípios. Muitos destes inclusive, dada a falta de coordenação do PNI pelo Governo Federal, se aventuram em negociações com produtoras de vacinas e até mesmo negociações com a Anvisa a fim de aprovar imunizantes ainda não previstos em nosso plano de imunização.
A grande causa da lentidão da vacinação no Brasil foi e é o negacionismo do Governo Federal, que se recusou durante todo o ano de 2020 a negociar doses. Para se ter uma ideia de nosso atraso, quando o governador de São Paulo, João Doria, anunciou o envio do pedido de uso emergencial da CoronaVac à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no dia 7 de janeiro de 2021, cerca de cinquenta países já tinham vacinado quase 18 milhões de pessoas[7].
Para refrescar a memória daqueles que compraram esta falsa narrativa, o Governo Federal já negociou (diga-se de passagem de maneira passiva, ou seja, não procurou pela oferta de vacinas mas foi procurado) as seguintes vacinas:
- CoronaVac – Governo Federal recusou compra em três (3) ocasiões: julho, agosto e outubro de 2020; nesta última ocasião após o Ministro da Saúde, general da ativa Pazuello, anunciar o imunizante como a “vacina brasileira”, Bolsonaro voltou atrás na manhã seguinte, 29 de outubro, e fez uma live para debochar do governador de São Paulo, João Dória, onde dizia: “Ninguém vai tomar tua vacina na marra não, tá o.k.? Procura outro! Eu que sou governo – o dinheiro não é meu, é do povo –, [o governo] não vai comprar tua vacina também não, tá o.k.? Procura outro pra pagar tua vacina aí.”
- Oxford – Fiocruz que fez o acordo. Em setembro de 2020, o Butantan e a Fiocruz estavam na fase 3 de testes das suas vacinas. Avesso a prestigiar um rival político como Doria, o Governo Bolsonaro decidiu fechar contrato apenas com a Fiocruz, excluindo o Butantan. E, mesmo assim, o imunizante da Fiocruz não surgiu como opção por esforço de Brasília, mas pelo discreto empenho de técnicos e cientistas e, em particular, de uma pesquisadora sem relação com o governo federal.
- Covax – O Ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, não queria que o Brasil integrasse o consórcio global Covax Facility, que entregou um milhão de doses de vacina AstraZeneca/Oxford em 21 de março de 2021 e ainda entregará outras 41 milhões. A coisa só mudou quando entrou em campo a embaixadora Nazareth Azevêdo, então representante do Brasil para a ONU em Genebra. Liderado pela OMS, o consórcio Covax Facility é uma coalização de cerca de 150 países que estimula o desenvolvimento e a distribuição de vacinas contra a Covid-19[8].
- Sputnik V – Um relatório do governo dos Estados Unidos produzido na gestão de Donald Trump afirma que o país persuadiu o Brasil a não comprar a Sputnik V, vacina contra a Covid-19 desenvolvida pela Rússia, a fim de “combater influências malignas nas Américas”. A informação está em um documento do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA (HHS, na sigla em inglês) sobre as ações tomadas em 2020. Somente no dia 12 de março de 2021, o governo brasileiro anunciou a compra de 10 milhões de doses da Sputnik V. O anúncio foi feito após o consórcio de governadores do Nordeste negociar outras 37 milhões de doses da vacina russa[9].
- Pfizer – Ignoramos a proposta de venda com um lote de 70 milhões de doses em agosto/setembro de 2020. Em carta datada de 12 de setembro, o diretor-executivo mundial da Pfizer, o grego Albert Bourla, mandou uma carta ao presidente Bolsonaro pedindo que se manifestasse com urgência se queria ou não a vacina, considerando “a alta demanda de outros países”, segundo revelação feita pela CNN Brasil. Mais uma vez, a oferta foi desprezada. Apenas em março de 2021, finalmente foi anunciado o contrato para compra do imunizante com previsão de 100 milhões de doses.
- Janssen – O Governo Federal efetuou a compra apenas em março de 2021, anunciada junto com o contrato com a Pfizer. O contrato prevê 38 milhões de doses.
- Moderna – Apenas em março de 2021 foi firmado acordo com a farmacêutica Moderna para a compra de 13 milhões de doses de vacinas contra a Covid-19[10].
*Evandro Camargo é economista formado pela Universidade Estadual de Maringá – UEM atua com gestão, monitoramento e avaliação de projetos sociais.