Artigo: O fundo da fossa
Por: Prof. Sergio A. Sant’Anna
Meu avô Francisco, falecido no ano de 2018 aos 90 anos, era um homem de inúmeras histórias, muitas delas repassadas de maneira oral pelos seus antepassados, e que retratavam a cultura do campo, a vida dedicada à agricultura, além do período de escravidão no sul da Bahia.
Certa vez, numa roda que fazíamos ao seu entorno, aos domingos, vô Chico contava sobre uma fossa que ficava bem distante da casa que habitavam e era dividida com outras famílias, muito frequentada nas longas madrugadas. O escuro dificultava o seu uso, porém a necessidade motivada pelas comidas apimentadas forçava o seu uso. Dia de feijoada era o ápice.
Numa noite escura e fria, iluminada pela lamparina, já que a lua estava encoberta, o menino Francisco caiu na fossa, evitou chamar aos mais velhos, sabia que ao acionar seu pai seria penalizado, portanto, passou horas tentando vir à superfície até que um de seus irmãos, incomodado por uma dor de barriga, usou a fossa e escutou os gritos de socorro. Chico fora retirado, todo sujo e envergonhado. Tomou um banho gelado e suas roupas necessitaram ser fervidas no dia seguinte. O nojo e a tristeza por ter passado por essa situação eram nítidos no narrar do pai de minha mãe.
Através desta metáfora, hoje vivemos a real situação vivida pelo meu avô em meados dos anos de 1930. Mas, o descuido o levou àquela situação constrangedora e nojenta, ao contrário do que vem acontecendo com todos aqueles que sabem das medidas restritivas e insistem na frequência em festas e aglomerações. Uma população alicerçada pelo poder que a juventude proporciona, destinando-os ao descaso e desprezo ao próximo. Resultado: hospitais lotados, Unidades de Terapia Intensiva com filas de espera, covas cavoucadas por profissionais exaustos, impressionados com a quantidade de corpos sepultados. A maioria, hoje, dos covitados sofrem pelo descaso dos outros ou por imprudência festiva, alimentados pela fossa que nos governa, guiados pelo negacionismo imprudente.
É lamentável que estejamos no pior momento da pandemia, pois quando parecia que o número de infectados e mortos diminuíra, a fossa reapareceu. E aquelas pessoas do breu, da ausência de lamparina não acreditaram que pudessem ocupar o fundo da fossa. Não foram tomados pela falta de conhecimento que fazia parte do cotidiano do meu avô, todavia pelo desrespeito que estrutura esse tal “cidadão de bem”. Esses que estiveram nas praias, nas festinhas com aglomerações, encontros em supermercados organizados via “zap” etc. O resultado esta aí: novas variantes do vírus, mais de dois mil mortos por dia, famílias dilaceradas. Imprudência? Sim. Somada a um governo desgovernado pelo negacionismo, ignorância e incapacidade gestora.
A fossa estava ali, não quiseram acreditar.
*Prof. Sergio A. Sant’Anna – Professor de Redação nas Redes Adventista e COC em SC e jornalista.
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