Sobre Todas as Cartas, Clarice Lispector
Por: Paulo Cesar Cedran*
Ainda em torno do centenário de Clarice Lispector, ocorrido em 10 de dezembro de 2020, não resisti ao desejo de ler a obra Todas as cartas, publicada pela editora Rocco, detentora dos direitos de publicação de suas obras.
Com prefácio e notas bibliográficas de Teresa Montero, posfácio de Pedro Karp Vasquez e pesquisa textual e transcrição de cartas de Larissa Vaz, não faz jus a observação que Vilma Arêas fez em artigo publicado na Folha de São Paulo, intitulado Volume de cartas de Clarice escancara sua solidão e sua intuição.
Resenhando o livro, Vilma Arêas diz que: mas é difícil determinar com tranquilidade as pessoas que lerão estas cartas. Quem serão elas? Imagino que, em primeiro lugar, serão especialistas, professores, ensaístas e pesquisadores (…) Em segundo lugar, virão os fás absolutos da ficção de Clarice, isto é, o oposto do que entendemos por ‘leitores’ e sempre ofendidos com qualquer comentário analítico. É pena”. (Folha de São Paulo, 05/12/2020, p. C-6).
Assim, meio ressabiado com essas observações e ao mesmo tempo desejoso em conhecer a intimidade quase indevassável ou indecifrável de Clarice Lispector, eu, me colocando na sua segunda categoria, como fá de Clarice, procurei também me portar como o leitor crítico de sua obra em uma categoria intermediária que ultrapassa a frivolidade de um fã. Assim, a leitura do catatau de 798 páginas, fluiu de uma forma que nem mesmo eu esperava. Nessa leitura encontrei algumas chaves que compartilho para tentar compreender Clarice e se esta afirmação é plausível de ser feita ao adentrar no cotidiano e no dia a dia que enreda sua existência e permeia o seu – ser-no-mundo.
A primeira chave acredito que seja aquela o ser de Clarice enquanto identidade que se referenciava a partir de seu contexto familiar. Sob essa chave, percebemos uma Clarice centrada em seu núcleo familiar composto pelas irmãs Tânia Kaufmann, Elisa Lispector e seu pai Pedro Lispector, que viria a falecer em 26 de agosto de 1940. Em torno desse núcleo, os laços indissociáveis se manifestam pela preocupação constante de Clarice com a saúde e o bem-estar dos seus familiares, em especial, suas irmãs, sempre referenciadas como: querida, bichinha, filhinha, florzinha adorada. Sob essa chave de leitura, vemos também a preocupação com as dores, resfriados, sugestões de roupas, remédios, cuidados pessoais e até advertências. Clarice se porta como mãe, irmã, amiga, confidente e mulher.
Numa outra chave de leitura, encontramos nas cartas que foram agrupadas por décadas, com início a partir de 1940, a presença de Clarice no meio intelectual e sua luta, e às vezes, repulsa em torno da publicação de suas obras. Nesta chave, Clarice se auto penitencia, ora se firmando em sua obra, em especial, Laços de Família, pela aceitação que teve pela crítica literária, vide Antônio Cândido, ora se considerando como uma mulher que não sabe escrever. Essa oscilação, acredito eu, se dá em função de sua personalidade depressiva e do próprio jogo clariciano de se esconder para se mostrar. Diante desse jogo, emerge a própria realidade de mulher, esposa, irmã, mãe, amiga e escritora. É dessa leva de cartas, que vem por exemplo, seu desabafo ao amigo e escritor Lúcio Cardoso, em missiva de 07 de fevereiro de 1945, quando desabafa: estou tentando escrever qualquer coisa que me parece difícil para mim mesma que eu me contenho para não me desesperar. É alguma coisa que nunca será gostada por ninguém, mas não posso fazer nada. (LISPECTOR, 2020, P. 146).
Mas a chave que mais me interessou em suas cartas foi aquela voltada ao tom propriamente confessional que permeia esse tipo de escrita. Nestes momentos, Clarice se deixa se entrever, mas ao mesmo tempo, se auto regula, ou melhor, se fecha diante de si mesma, como se tivesse deixado escapar algo obsceno que não poderia ter sido revelado, ou alguma palavra que ao ser proferida, ou melhor, escrita, quebra seu próprio encanto.
O primeiro trecho dessa chave de leitura, identifiquei numa carta datada de 07 de agosto de 1944, vinda de Lisboa e endereçada às irmãs: Elisa e Tânia. Num dado momento, Clarice se mostra: “ Não estou tendo prazer em viajar. Gostaria de estar aí com vocês ou com Maury. O mundo todo é ligeiramente chato, parece. O que importa na vida é estar junto de quem se gosta. Isso é a maior verdade do mundo. E se existe um lugar especialmente simpático é o Brasil”. (LISPECTOR, 2020. p.89).
Mas será em uma carta escrita em Berna e endereçada à Tânia, datada de 06 de janeiro de 1948, que Clarice ao aconselhar Tânia, se mostra em reverso nesse espelho que ela pede para a própria Tânia se mirar, quando diz: “Minha irmãzinha, ouça o meu conselho, ouça meu pedido: respeite a você mais do que aos outros, respeite suas exigências, respeite mesmo o que é ruim em você – respeite sobretudo o que você imagina o que é ruim em você – pelo amor de Deus, não queira fazer de você uma pessoa perfeita – não copie uma pessoa ideal, copie você mesma – esse é o único meio de viver. Eu tenho tanto medo que aconteça com você o que aconteceu comigo, pois nós somos parecidas. Juro por Deus, que se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia – será punida e irá para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não será punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence e o que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida exige. Parece uma moral amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Espero em Deus que você acredite em mim”. (LISPECTOR, 2020, p.355-356).
E assim, em tom de desabafo ou desassombro encontramos várias clarices que vão se desnudando em sua correspondência que também não deixa de ser uma forma de literatura. Muitas outras clarices se fazem e se desfazem ao longo das cartas. Agora, fica a sugestão aos especialistas e aos fãs de lerem Todas as cartas, para se inquietarem ainda mais, diante de uma mulher que fascina por se decifrar no indecifrável.
*Paulo Cesar Cedran, Mestre em Sociologia e Doutor em Educação Escolar
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