Artigo: A sujeição dos créditos à recuperação judicial de produtor rural
Por Talita Rotta Kamiya*
O empresário rural tem tratamento diferenciado e simplificado conferido pelo Código Civil, conforme dispõe o artigo 970. Na sequência, o artigo 971 faculta ao empresário, cuja atividade rural constitua sua principal profissão, a inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis, permitindo-lhe optar pelo regime civil ou empresarial e estabelecendo uma exceção à obrigatoriedade de registro.
Dessa forma, adotou-se o entendimento de que o produtor rural que comprovadamente exerce a atividade há mais de dois anos e está registrado na Junta Comercial, independentemente de ter requerido a inscrição como empresário há menos de dois anos, preenche o requisito (exercício regular das atividades por período superior a dois anos) previsto no caput do artigo 48 da Lei nº 11.101/2005 para o pedido de recuperação judicial, caso necessário.
Adotada a teoria da empresa pelo Código Civil de 2002, nos termos do artigo 966, o empresário é definido pelo exercício profissional de atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços, sendo que, no caso do produtor rural, por ser facultativa a inscrição, não há irregularidade pela ausência de registro, que é declaratório e não constitutivo.
Por sua vez, a controvérsia mais recente está na sujeição dos créditos constituídos antes da inscrição do produtor rural como empresário na Junta Comercial aos efeitos da recuperação judicial.
Há quem argumente que os créditos constituídos antes do registro não se sujeitariam à recuperação judicial, pois foram negociados com pessoa física, havendo quebra de expectativa quanto ao perfil do devedor, na medida em que não se assumiu o risco de que pudesse ser conferida a recuperação judicial.
A título exemplificativo há os agravos de instrumento nº 1012593-71.2017.8.11.0000 e nº 1012691-56.2017.8.11.0000 do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, cujos acórdãos seguem esse posicionamento. Em sentido contrário, há o agravo de instrumento nº 2113792-10.2014.8.26.0000 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Ocorre que não se sustenta a alegação de imprevisibilidade da recuperação judicial justamente pela previsão legal que autoriza o requerimento da inscrição no registro empresarial pelo produtor rural, a partir do qual se equipara ao empresário sujeito a registro.
O argumento desconsidera, ainda, o regime jurídico do empresário individual, que não ostenta outra personalidade jurídica além da que tem como pessoa física, verificando-se a confusão (indistinção) patrimonial e a responsabilidade ilimitada por todas as obrigações assumidas, de modo que não é possível excluir da recuperação judicial os créditos constituídos antes do registro.
Entender pela não submissão de tais créditos contraria o artigo 49 da Lei nº 11.101/2005, segundo o qual “estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos”.
Nesse sentido, considerando que o objetivo da recuperação judicial é viabilizar a superação da crise econômico-financeira e a consequente preservação da empresa, as exceções à regra do referido dispositivo são estritas e expressamente previstas em lei, de modo que não há fundamento legal para o argumento de que apenas os créditos constituídos após o registro empresarial do produtor rural estariam sujeitos à recuperação judicial, o que afronta o princípio basilar da paridade de credores.
Ademais, o argumento compromete a própria efetividade do processo recuperacional, tendo em vista que a recuperação judicial pressupõe a situação de crise, sendo necessária verdadeira reestruturação econômica, envolvendo, por consequência lógica, os créditos anteriormente existentes.
Além disso, é incompatível com o instituto da recuperação judicial de produtor rural, não havendo sentido em permitir o pedido pelo produtor rural sem a exigência de prazo mínimo da inscrição como empresário e excluir de seus efeitos os créditos constituídos antes do registro empresarial.
Por fim, corroborando os fundamentos expostos, evidencia-se a impropriedade do argumento em análise, sobretudo, ao considerar o procedimento falimentar, já que, a partir do registro empresarial, o produtor rural também se torna sujeito à falência e, na hipótese de decretação da falência, é indiscutível que não serão apenas os créditos constituídos após o registro submetidos aos seus efeitos.
Portanto, por diversos prismas, conclui-se que o argumento de que os créditos constituídos anteriormente à inscrição do produtor rural como empresário não se sujeitariam à recuperação judicial revela-se infundado, além de frontalmente contrário ao propósito e aos princípios da recuperação.
* Talita Rotta Kamiya é advogada da área de direito empresarial no escritório Dosso Toledo Advogado